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Entrevista – Alfredo Bosi

Veículo: Calendário de Cultura e Extensão
Data de publicação: junho/2004
Pauta e redação: Luciana Silveira / Mariana Shinohara
 

 

Bosi: "Nenhum povo dispõe de uma só cultura"

Desde setembro do ano passado, o professor, crítico e historiador literário Alfredo Bosi ocupa a cadeira número 12 da Academia Brasileira de Letras. Na Universidade de São Paulo, é professor de literatura brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e vice-diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA).

Bosi tem diversas obras publicadas, como O Ser e o Tempo da Poesia, Dialética da Colonização e Literatura e Resistência. Em entrevista ao Calendário, o professor Alfredo Bosi discute como está a cultura brasileira nesta época de globalização.

Calendário – Como o senhor caracteriza a cultura brasileira atual?
Alfredo Bosi – Eu começaria discutindo a própria pertinência da expressão cultura brasileira. É uma expressão muito genérica. Cultura brasileira, assim no singular, pode dar a impressão de que todos os fenômenos simbólicos, religiosos e artísticos de um povo tenham uma homogeneidade e possam ser assumidos por uma expressão única, que é cultura brasileira. Podemos dizer que atualmente nenhum povo dispõe de uma só cultura. A sociedade é diferenciada por etnia, por classes, por grupos culturais, de modo que seria mais pertinente falar em culturas brasileiras. Durante bastante tempo esta visão da cultura brasileira foi submetida a critérios raciais. Uma obra clássica do antropólogo Artur Ramos, chamada Introdução à antropologia brasileira, dividia a cultura brasileira em culturas européias e culturas não-européias. As culturas européias eram, basicamente, a cultura portuguesa, a francesa, a espanhola, que teriam influenciado na formação da nossa cultura erudita; já as culturas não-européias eram as culturas indígena e africana. Em uma última instância haveria uma divisão de branco, índio, negro. Mais tarde, com a imigração asiática, falava-se na cultura japonesa, que era considerada própria da raça amarela. Este critério foi superado porque a mestiçagem envolveu não só o terreno material e os cruzamentos, mas também o terreno moral e artístico. Então, é muito difícil encontrar no Brasil, sobretudo na vida popular, algo que seja puramente português, negro ou indígena. Este critério étnico começou a ser superado por um critério nacional, que também me parece insuficiente, isto é, teríamos uma cultura nacional, brasileira, que incluiria a mestiçagem e culturas estrangeiras. Então, no lugar de um critério racial, passou a se ter um critério ideológico nacional. Com o tempo isto também se mostrou insuficiente, perigosamente manipulador, pois é um certo nacionalismo xenófobo, que começou a rejeitar tudo aquilo que viria de fora e valorizar de uma maneira ideológica o que seria nosso. Eu acho que o nacionalismo tem os seus lugares corretos na vida de um povo. O nacionalismo econômico, por exemplo, é extremamente interessante em um certo momento do desenvolvimento. O nacionalismo cultural puro é insustentável porque, evidentemente, as culturas estão recebendo idéias, valores, tecnologias de uma cultura de fora e têm que saber assimilar todas estas fontes.
Uma visão marxista do problema, que começou a crescer no Brasil a partir dos anos 60, insiste em uma classificação socioeconômica. Teríamos a cultura burguesa, a cultura da classe alta, a da classe média e uma cultura pobre, a cultura operária, popular. Esta divisão é interessante porque ela nos mostra bem os elementos de dominação, de influência, de manipulação, mas ainda assim, em virtude das inter-relações, eu proporia outro tipo, como tentei fazer em um capítulo da Dialética da Colonização. Neste ensaio, chamado "Culturas Brasileiras", tentei demonstrar que poderíamos pensar no seguinte quadro: teríamos uma cultura universitária, erudita, implantada em todo território nacional; uma cultura que tem uma capacidade muito grande de reprodução, já que é procurada por todos aqueles que desejam ter uma instrução superior. Haveria, no outro extremo, a cultura popular, no sentido folclórico da palavra. é claro que a sociedade, na medida em que foi se modernizando, foi restringindo muito estas áreas, mas nem por isso elas deixam de existir. Mas estas não são as únicas. O capitalismo criou uma cultura de consumo através dos meios de massa; uma cultura que é transmitida diariamente através da televisão, de rádios, de jornais, de histórias em quadrinhos. São produções de mercado, mas têm seus valores, o que eu chamaria de indústria cultural. Esta cultura ficaria no meio, já que tanto o universitário quanto uma pessoa iletrada, desde que tenha televisão, e a grande maioria tem, estão expostos à cultura de massa. A expressão cultura de massa precisa ser relativizada, porque não são as massas que fazem aquela cultura, elas recebem. Esta cultura de massa significa cultura para a massa. E ainda me pareceu que haveria espaço para uma quarta esfera, que seria a cultura criadora e individualizada, que abrange os cineastas, os músicos, os poetas, os pintores, os escultores, enfim, o artista. Claro que o artista pode ter um diploma universitário ou ter relação com a vida popular, mas de uma maneira ou de outra a cultura que ele faz não é uma cultura sistemática, como a da escola. O artista cria, tem a marca da individualidade, quando é um artista de valor evidentemente. Então, não podemos dizer que a cultura criadora seja uma parte da cultura universitária, ou, caso o artista seja um artista da cultura popular, não podemos dizer que ele é uma expressão daquela cultura, pois ele tem um elemento diferenciado, criador. Eu vejo na cultura brasileira, atualmente, estas quatro faixas, e eu acho que elas têm inter-relações muito fortes.

Calendário – De que forma a globalização econômica e cultural contribuiu para essa configuração?
Alfredo Bosi – Das várias culturas que citei, a globalização está presente, sobretudo, na cultura universitária, pois é impossível ver hoje a cultura universitária sem os meios eletrônicos. Temos uma globalização cultural forte; o que nós estudamos aqui também se estuda na França, nos EUA. Há uma forte homogeneidade de temas. Eu acho um fato irreversível tanto para o bem quanto para o mal; aqui temos que ser relativistas. é muito bom que as culturas se conheçam, comuniquem-se, acho que é uma forma de superar preconceitos; mas, por outro lado, esta globalização pode ser um nome falso, significar a dominação de alguns, e isto não é mais globalização. O economista Paulo Nogueira Batista Junior escreveu para a Revista Estudos Avançados um artigo sobre os "Mitos da 'globalização'". Segundo o artigo, teríamos globalização se as nações pudessem concorrer em pé de igualdade, trocando a sua cultura. Não é o que acontece, a predominância é muito forte. Atrás da globalização existem pólos de dominação. A globalização seria muito boa se o nome correspondesse à idéia de universalização.

Calendário – Diversos costumes populares (como festas religiosas, por exemplo) resistem, principalmente no interior. Por que isso acontece?
Alfredo Bosi – Esta é uma pergunta interessante. Nas décadas de 50 e 60, o Brasil passou por uma fase de revolução moderna, houve um grande projeto de desenvolvimento industrial moderno. Nesta fase julgava-se que os costumes populares, folclóricos, já estavam sendo superados e que a cultura popular seria, a principio, absorvida pela cultura de massa e pela cultura universitária. Em parte isto aconteceu. A urbanização muito rápida e violenta certamente destruiu o espaço das festas populares, desenraizou, mas não extinguiu. A pergunta é interessante porque ela supõe que exista uma resistência da cultura popular em relação à cultura de massa e, de fato, verificamos que praticamente o Brasil inteiro continua com estes costumes. Os antropólogos que estudam mais de perto estes fenômenos religiosos acham que são formas de enraizamento, isto é, as comunidades precisam de um apoio mútuo, precisam de proteção, precisam ter uma identidade. A religião, qualquer que seja ela, é fortemente agregadora e dá às pessoas conforto espiritual. Então, do ponto de vista sociológico, estas festas são uma espécie de cimento moral e ideológico, graças ao qual as pessoas se sentem unidas e enraizadas.

Calendário – O senhor acredita que é necessário tomar algum tipo de medida para preservar a cultura brasileira? Que medidas seriam essas?
Alfredo Bosi – Eu tenho dúvidas em relação a ações da parte do Estado. Acho que a cultura popular cresce de uma maneira espontânea. Ela tem uma função dentro da sociedade e vai viver e sobreviver enquanto esta função existir. Não julgo que o Estado deva intervir. O melhor caminho é o Estado dar educação, saúde, saneamento básico, mas não tocar naquilo que é próprio da cultura popular, o justo é que as pessoas cresçam e se expressem de acordo com suas tradições.

Calendário – Segundo Tolstoi, "Se quiseres ser universal, fala da tua aldeia". Isso ainda vale?
Alfredo Bosi – Em grande parte vale. Os poetas, escritores devem começar a se aprofundar em sua própria experiência. Devemos falar do nosso tempo, do nosso lugar, pois assim poderemos ser entendidos por homens de outras culturas. Os mais belos poemas de Manuel Bandeira, um dos maiores poetas brasileiros, dizem respeito à infância. Leitores cultos de qualquer parte do mundo entenderão o que ele disse sobre a sua infância em Pernambuco. Há poetas, escritores que falaram dos seus espaços de inserção e podem ser entendidos em qualquer língua; foram universais falando de um mundo particular. Uma grande filósofa francesa, Simone Weil, escreveu, no tempo da guerra, um trabalho chamado O enraizamento. Ela serviu como combatente na época em que a França tinha sido ocupada pelos alemães e ficou junto a um grupo de resistência na Inglaterra. Maurice Schuman, um grande político, pediu a Simone Weil que redigisse uma carta de direitos humanos; uma carta que deveria ser debatida e promulgada logo que os aliados vencessem os nazistas. Ela, então, escreveu um trabalho muito belo que apontava, entre os direitos, um bastante original: o direito ao enraizamento. Para Simone Weil, este direito estava sendo esquecido e todo homem tem direito a enraizar-se no seu meio, não só na sua família, mas também no meio físico e no meio cultural. Isto é muito importante porque ela observava que a guerra produzia grandes deslocamentos, migrações. O que acontece é que as pessoas perdem as suas raízes e não encontram em outro lugar condições para recuperarem a sua identidade. Então, segundo Simone, era preciso respeitar o direito que a pessoa tem de manter suas raízes. Eu acho que uma cultura popular não pode sobreviver muito tempo sem manter estas raízes. é preciso que se dêem condições para que as pessoas vivam nos ambientes em que estão ou, caso elas saiam, que os outros meios também ofereçam estas condições.