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Entrevista – José Eduardo Martins

Veículo: Calendário de Cultura e Extensão
Data de publicação: novembro/2004
Pauta e redação: Luciana Silveira
 

 

José Eduardo Martins, professor da ECA, recebe Ordem do Rio Branco

No dia 15 de novembro, o pianista e professor da Universidade de São Paulo José Eduardo Martins receberá em Bruxelas a Ordem do Rio Branco, condecoração do Ministério das Relações Exteriores que reconhece serviços meritórios e virtudes cívicas. Martins, que já foi chefe do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP, foi responsável pela primeira audição mundial de diversas obras eruditas, muitas delas de autores contemporâneos. Em entrevista ao Calendário, ele comenta sua nomeação ao prêmio e a situação da música erudita no Brasil.

Calendário – Qual foi sua formação musical e a quais compositores o senhor se dedicou?
José Eduardo Martins – Comecei a tocar piano aos nove anos de idade. Tive como professor José Kliass, que formou gerações de pianistas importantes no Brasil, entre os quais Yara Bernette, Bernardo Segall e meu irmão João Carlos [Martins], entre tantos outros. Depois, recebi uma bolsa do governo francês e tive quatro anos de formação intensa em Paris. Trabalhei com a pianista Marguerite Long, que foi uma lenda, amiga de Debussy, Ravel Fauré, Albéniz e tantos outros.
Retornei ao Brasil aos 25 anos de idade, e até os 30 eu realizava muitíssimo o repertório tradicional, que continuei a fazer por muitos anos. Mas a partir dos trinta e poucos anos comecei a escolher o meu repertório. Apresentei no Brasil integral de Jean-Philippe Rameau, Claude Debussy e Mussorgsky, e também muitas obras em primeira audição de um repertório que não era tão freqüentado, mas de compositores importantes.
Por volta de 1985, comecei a me dedicar também à música contemporânea, mas nunca desprezando os autores que eu priorizei. Apresentei, em primeira audição mundial, mais de 100 obras entre composições de importantes autores internacionais para um projeto de estudos contemporâneos que eu criei.

Calendário – O senhor tem diversos CDs gravados e lançados fora do país. Quando esse processo começou?
José Eduardo Martins – Dediquei-me a apresentações públicas até os meus cinqüenta anos, e nestes últimos anos tenho me dedicado intensamente às gravações. Gravei 5 LPs no Brasil, durante a década de 1980, priorizando a música brasileira de Henrique Oswald, que é um compositor que eu trabalhava muito e continuo a trabalhar. A partir de 1995, comecei a gravar na Europa: Bélgica, Bulgária e Portugal. Até o final do ano eu terei 15 CDs internacionais.

Calendário – Como ocorreu a nomeação para a Ordem do Rio Branco?
José Eduardo Martins – Receberei essa condecoração no dia 15 de novembro na cidade de Bruxelas, onde darei um recital patrocinado pela Embaixada Brasileira. Jerônimo Moscardo, embaixador brasileiro na Bélgica, já havia exercido a mesma função na Romênia, além de ter sido, anteriormente, Ministro da Cultura durante o governo de Itamar Franco. Em 2001, realizei duas turnês pela Romênia. Toquei recitais em abril e deixei meus CDs para o Ministério da Cultura, e eles foram passados pela rádio estatal. Qual foi a minha felicidade quando, alguns meses depois, através da Embaixada da Romênia no Brasil, fui comunicado de que deveria retornar para outra turnê naquele país, onde recebi o título de Dr. Honoris Causa na Universidade Constantin Brancusi. Como faço todos os anos, neste também me apresentei na Bélgica, além de lançar dois CDs lá. O embaixador era o Jerônimo Moscardo, que esteve no recital. Este ano estou completando 50 anos de atividade pianística. Dois ou três meses depois, recebi a comunicação da Embaixada do Brasil na Bélgica informando que ele havia recomendado ao governo brasileiro esta condecoração, a Ordem do Rio Branco, que me deixou extremamente feliz, e que acredito não merecer.

Calendário – O senhor já realizou diversos recitais e lançou vários CDs na Bélgica. Como foi criada essa ligação?
José Eduardo Martins – Desde 1995 tenho na Bélgica uma grande acolhida. Nesse ano, gravei um CD e dei um recital com obras de Henrique Oswald. Após isso, anualmente sou convidado para gravar por um selo de muito respeito, De Rode Pomp. Já visitei esse país mais de 15 vezes e gravei 10 CDs lá, e esse foi o motivo de o embaixador do Brasil na Bélgica ter recomendado a homenagem. O próximo CD será lançado no dia 15, quando receberei a Ordem do Rio Branco e darei um recital. Esse CD tem só autores contemporâneos belgas, que gravei em fevereiro deste ano, quando lancei outros 2 CDs com obras do português Carlos Seixas. Em 11 de novembro, no recital que darei no Porto, sairá um CD que gravei no ano passado em Portugal.

Calendário – Apesar da intensa atividade na Europa, o senhor se apresenta pouco por aqui. Por quê?
José Eduardo Martins – Por aqui me apresento pouco por vários motivos. Um dos motivos, nostálgico até, é que hoje os jornais e revistas ignoram absolutamente a atividade do músico brasileiro. Há páginas nos principais jornais quando é realizado um grande evento de música, mas atualmente não temos um crítico musical - temos cronistas que escrevem sobre música. Na década de 1950, tínhamos pelo menos dez que escreviam semanalmente e com competência; hoje, 50 anos depois, a população cresceu e não temos mais um crítico. é lamentável.
Tenho me apresentado lá fora, e em cidades do interior do Brasil. Poderia dizer até que eu perdi o interesse em me apresentar em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas pode ser que mais tarde isso mude.

Calendário – Há formas de se incentivar o brasileiro a ouvir música erudita?
José Eduardo Martins – Eu tenho a impressão de que é um problema quase impossível de ser solucionado. Cada vez mais verificamos a penetração de uma música popularizada, sem características... mesmo aquela música popular brasileira perdeu sua índole. Hoje são preferidos outros entretenimentos, e a música erudita ficou quase que em um gueto. é um público pequeno, que gosta dessa música e sempre vai gostar, como no mundo inteiro. Mas infelizmente o povo, por assim dizer, tem sido diariamente martelado com relação a uma música de divulgação fácil e descartável: o jovem canta hoje e em um mês ele até esquece a melodia, pois já cantarola uma outra. São coisas absolutamente descartáveis, e isso é muito triste.

Calendário – Na Universidade de São Paulo, o Departamento de Música foi criado há 34 anos. Qual é a contribuição que a formação acadêmica oferece para os músicos?
José Eduardo Martins – A Universidade deveria trazer uma formação "decisiva" para o jovem que aqui fica de quatro a seis anos na graduação - pode ficar mais três, seis anos, fazendo um mestrado, um doutorado. Ela traz elementos importantíssimos para o jovem, isso é indubitável. Mas o drama maior é como o jovem entra na universidade. Na maioria das vezes ele entra despreparado. Ele passa pelos exames seletivos da área específica, mas geralmente sem o embasamento cultural. A cada ano os jovens lêem menos, e isso se reflete na parte musical. Aqui faz-se o possível para tornar esse jovem um músico, um futuro músico. Quando há o talento, e muitos dos jovens têm talento, temos um caminho muito importante a trilhar. Temos ainda o problema da disciplina: se ele tiver talento e disciplina para levar o curso absolutamente a sério, há esperanças de que esse jovem possa tornar-se um músico bom, um músico que servirá à sociedade.

Calendário – Que importância um Departamento de Música tem na Universidade?
José Eduardo Martins – Eu falei com os vários reitores da Universidade ao longo da minha carreira acadêmica. As artes representam a Universidade mais do que qualquer outra atividade. Quando a USP completou 60 anos, foi tema de um Globo Repórter. Eu falei ao reitor na ocasião, o professor Fava [Prof. Flávio Fava de Moraes, reitor da USP entre 1993 e 1997], que se ele considerasse o programa todo, a grande parte reservada à arte ultrapassava praticamente todas as outras áreas juntas, o que foi provado. O cartão de visitas da Universidade é representado pelos departamentos de arte.